Uma questão
mais imediata. Sally surpreendeu-se um tanto com seu tom
desapaixonado, prático, como se ela fosse datilografar uma carta ou
fazer uma compra. Na realidade, estava por entrar num relacionamento
que podia potencialmente alterar o curso de toda a sua vida,
reestruturar totalmente seu conceito do mundo, e trazer à
consideração cada questão moral, cada ato, cada decisão e cada
atitude de todos os seus anos anteriores; suas mais profundas
cicatrizes e emoções, as áreas mais pessoais e resguardadas
de sua vida, estariam sendo expostas. O relacionamento seria um
confronto, talvez devastador.
Pelo menos, era
isso o que ela esperava do acordo, e por esse motivo havia ponderado
a ação a noite toda, pesando os prós e os contras, considerando os
custos, testando e eliminando as opções. Tornou-se claro para ela
que teria de pagar um preço enorme em termos de ego e vontade
própria, e que o acordo traria consigo implicações assombrosas
para o futuro. Mas todas as dúvidas foram examinadas e respondidas,
cada objeção foi ouvida com imparcialidade, e entre os debates
ferozes e acalorados que Sally travou consigo mesma no tribunal de
sua própria consciência, ela dormia pensando neles.
Quando a luz do
dia espiou pelas janelas do ônibus, ela já havia resolvido em sua
mente que, considerando todas as coisas, esse importante compromisso
seria a coisa mais lógica, mais prática e mais desejável que podia
fazer, as vantagens excedendo em muito as desvantagens.
Fazia
silêncio no parque, com poucas pessoas por ali além de uma matrona
que levava o seu poodle para
dar uma volta e alguns jovens executivos correndo ao trabalho. Ela
mudou-se para outro banco mais perto do laguinho, totalmente exposto
ao sol matutino, e sentou-se, a mochila ao seu lado.
Então ela
deu-se uma boa e longa olhada. Vestida de calças rancheiras e uma
jaqueta azul, com um gorro de meia na cabeça e uma mochila ao lado,
parecia uma nômade sem lar.
Parecia
solitária e sozinha.
Também parecia
pequena e insignificante num mundo muito grande, e isso tinha mais
peso em sua mente do que qualquer outra coisa. Como deveria parecer a
um Deus grande o bastante para ter criado esse globo enorme no qual
ela se sentava? Como um micróbio na lâmina de um microscópio? Como
chegaria Ele a encontrá-la?
Bem, tudo o que
estava ao seu alcance era fazer um pouco de barulho, clamar por ele,
criar um distúrbio, enviar alguns foguetes de sinalização verbais.
Talvez pudesse fazer com que ele a visse ou ouvisse.
Ela colocou o
caderno no colo e voltou as páginas até chegar a uma de notas que
havia preparado. Agora... onde começar?
Falou baixinho,
mal formando as palavras com os lábios. Sentia-se acanhada e estava
disposta a admiti-lo.
— Umm... alô.
— Talvez ele a ouvisse, talvez não. Ela falou novamente. — Alô.
— Isso seria o suficiente. — Imagino que saiba quem sou, mas me
apresentarei assim mesmo. Parece a coisa certa a fazer. Meu nome é
Sally Beth Roe, e acho que a gente se refere à sua pessoa como...
Deus. Ou talvez Jesus. Já ouvi isso ser feito. Ou... Senhor.
Compreendo que atende por diversos títulos, e por isso espero que me
permitirá tatear um tantinho. Faz muito tempo desde a última vez em
que tentei orar.
— Umm... de
qualquer forma, gostaria de encontrar-me com o Senhor hoje, e
discutir a minha vida e que possível papel o Senhor poderia desejar
desempenhar nela. E obrigada desde já por seu tempo e atenção.
Ela olhou
fixamente as anotações. Havia chegado até ali. Acreditando que
havia prendido a atenção de Deus, ela prosseguiria com o próximo
item.
— Para
revisar rapidamente qual o motivo desta reunião, acho que o Senhor
se lembra da nossa última visita, há aproximadamente trinta anos,
na... Igreja Batista de Monte Sião, em Ireka, na Califórnia. Quero
que o
Senhor saiba
que eu realmente gostava das horas que passávamos juntos então. Sei
que não falei nada a respeito disso em bastante tempo, e peço
desculpas. Foram horas preciosas, e agora são minhas recordações
favoritas. Alegro-me por tê-las.
— Assim,
suponho que o Senhor esteja querendo saber o que aconteceu, e
porque eu desfiz o nosso relacionamento. Bem, não me lembro do que
aconteceu exatamente. Sei que os tribunais me devolveram à minha
mãe, e ela não estava disposta a levar-me à escola dominical como
a tia Bárbara fazia, e então fui morar num lar temporário, e
depois... Bem, qualquer que fosse o caso, nossos tempos juntos
simplesmente não continuaram, e isso é tudo... Bem, acho que isso
são águas passadas...
Sally
deteve-se. Havia algum tipo de despertar ocorrendo dentro de si? Deus
podia ouvi-la. Ela sentia isso; apenas sabia-o de algum modo. Aquilo
era estranho. Era algo novo.
— Bem... —
Agora ela havia perdido o fio da meada. — Acho que sinto que o
Senhor me está ouvindo, por isso quero agradecer-lhe. — Ela
conseguiu retomar os pensamentos. — Oh, de qualquer forma, acho que
eu era uma jovem enraivecida, e talvez tenha-o culpado por minhas
tristezas, mas... de qualquer forma, resolvi que podia cuidar de mim
mesma, e assim foi que aconteceu basicamente a maior parte da minha
vida. Estou certa de que o Senhor conhece a história: tentei o
ateísmo, e depois o humanismo com uma forte dose de evolução
incluída, e isso deixou-me vazia e tornou sem sentido a minha vida;
então, em seguida, tentei o humanismo e misticismo cósmicos, e eles
serviram para muitos anos de ilusões e tormentos sem objetivo, e,
para falar a verdade, para o apuro em que estou metida no momento,
inclusive o fato de ter sido condenada como criminosa. O Senhor sabe
tudo a respeito disso.
Muito bem,
Sally, agora aonde vai? É melhor tratar logo do que realmente
importa.
— Bem, de
qualquer forma, acho que o que tentava dizer é que Bernice, lá em
Ashton, estava certa, pelo menos no que diz respeito a Sally Roe. Eu
tenho um problema moral. Li um pouco a Bíblia. Umm... é um bom
livro... e um belo trabalho — e vim a perceber que o Senhor é um
Deus de moral, de ética, de absolutos. Acho que é isso o que
"santo" significa. E estou de fato contente por isso,
porque então podemos saber onde ficam os nossos limites; podemos
saber qual é a nossa posição...
— Estou
enrolando, sei disso.
Sally parou
para pensar. Como poderia dizê-lo? Exatamente o que era que desejava
de Deus?
— Acho...
— Oh-oh. Emoção. Talvez seja por isso que
não consigo chegar ao que preciso dizer. —
Acho que preciso perguntar-lhe a respeito do seu amor. Sei que ele
existe; a Sra. Gunderson sempre falava a respeito, e também a minha
tia Bárbara, e agora tive um curto vislumbre dele novamente em
minhas conversas com Bernice e com aquele pastor, Hank, o Encanador.
Preciso saber se o Senhor...
Ela parou.
Lágrimas se lhe formavam no canto dos olhos. Ela as enxugou e
respirou fundo diversas vezes. Isso deveria ser prático, não alguma
experiência emocional, subjetiva da qual ela pudesse duvidar mais
tarde.
— Desculpe.
Isto é difícil. Há uma porção de anos envolvidos, uma porção
de emoções. — Outra respiração profunda. — De qualquer forma,
eu tentava dizer que... eu gostaria muito que o Senhor me aceitasse.
— Ela parou e deixou que o aperto na garganta melhorasse. —
Porque... me disseram que o Senhor me ama, e que arranjou para que
todos os meus erros, minhas transgressões morais, fossem pagos e
perdoados. Vim a compreender que Jesus morreu para pagar a minha
culpa, para satisfazer a sua justiça santa. Umm... aprecio isso.
Obrigada por esse tipo de amor.
— Mas eu...
quero entrar nesse tipo de relacionamento com o Senhor. De algum
jeito. Eu o ofendi, e ignorei, e tentei ser eu mesma um deus, não
importa quanto isso lhe possa parecer estranho. Servi a outros
espíritos, e matei minha própria filha, e trabalhei muito a fim de
desviar muita gente...
As lágrimas
vinham de novo. Ora essa. Considerando o assunto em questão, umas
lágrimas não seriam impróprias.
— Mas se o
Senhor me quiser... se apenas me aceitar, eu estarei mais que
disposta a entregar-lhe tudo o que sou, e tudo o que tenho, valha o
quanto valer. — Palavras de trinta anos antes vieram-lhe à mente,
e captaram perfeitamente os seus sentimentos: — Jesus...
Dessa vez ela
não pôde conter as emoções. O rosto corou, os olhos se encheram,
e ela teve medo de continuar.
Mas continuar
ela continuou, mesmo enquanto a voz falhava, as lágrimas lhe
escorriam pelas faces, enquanto o corpo principiava a tremer.
— Jesus...
quero que o Senhor entre no meu coração. Quero que o Senhor me
perdoe. Por favor, perdoe-me.
Ela chorava e
não conseguia parar. Tinha de sair daquele lugar. Não podia
permitir que alguém a visse assim.
Agarrou a
mochila e apressou-se para longe do laguinho, saindo da calçada e
entrando no meio de umas árvores próximas. Debaixo do abrigo das
folhas novas e primaveris, ela encontrou uma pequena clareira e caiu
de joelhos sobre o chão fresco, seco. Com uma nova liberdade que
esse esconderijo trazia, o coração de pedra tornou-se um coração
de carne, os mais profundos clamores daquele coração tornaram-se
uma fonte, e ela e o Senhor Deus começaram a falar acerca de coisas
enquanto os minutos passavam suavemente, despercebidos, e o mundo ao
seu redor perdia a importância.Em cima, como se outro sol acabasse
de nascer, as trevas se abriram, e raios puros, brancos, atravessaram
as copas das árvores, inundando Sally Beth Roe com uma luz
celestial, brilhando através do seu coração, seu espírito mais
íntimo, obscurecendo seu vulto com um fogo ofuscante de santidade.
Lentamente, sem sentir, sem som, ela acomodou-se para a frente, o
rosto no chão, o espírito transbordando com a presença de Deus.
Em toda a sua
volta, como raios de uma roda assombrosa, como raios de luz emanando
de um sol, lâminas angelicais descansavam no chão, as pontas
voltadas na direção dela, os cabos estendidos para fora, seguros
nos punhos fortes de centenas de nobres guerreiros que se ajoelhavam
em círculos perfeitos e concêntricos de glória, luz e adoração a
Deus, as cabeças no chão, as asas estendidas na direção do céu
como um jardim florescente e animado de chamas. Eles mantinham
silêncio, os corações cheios de temor santo.
Como em
inúmeras vezes no passado, em inúmeros lugares, com assombro
maravilhoso, inescrutável, o Cordeiro de Deus estava no meio deles,
o Verbo de Deus, e mais: o Verbo final, o fim de todas as discussões
e desafios, o Criador e a Verdade que sustenta toda a criação — e
mais maravilhoso que tudo, e mais inescrutável de tudo, o Salvador;
um título que os anjos sempre contemplariam e com o qual sempre se
maravilhariam, mas que somente a humanidade podia conhecer e
compreender.
Ele havia vindo
para ser o Salvador daquela mulher. Ele a conhecia pelo nome; e
falando-lhe o nome, ele a tocou.
E os pecados
dela desapareceram.
Um farfalhar
começou na primeira fileira de anjos, depois na seguinte, e depois,
como uma onda arremetendo para fora, as asas sedosas de fileira em
fileira de guerreiros arrepanhou o ar, elevando um bramido e
soerguendo os anjos sobre seus pés. Os guerreiros seguraram as
espadas na direção dos Céus, uma floresta de lâminas chamejantes,
e puseram-se a bradar em júbilo tumultuado, as vozes ribombando e
sacudindo todo o reino espiritual.
Guilo, tão
brilhantemente glorificado como jamais o fora, tomou seu lugar acima
de todos eles, e brandiu a espada à volta em arcos chamejantes
enquanto bradava:
— Digno é o
Cordeiro! — trovejaram os guerreiros.
— Digno é o
Cordeiro! — bradou Guilo mais alto ainda.
— Digno é o
Cordeiro! — responderam todos.
— Pois foi
morto!Guilo apontou a espada a Sally Beth Roe, prostrada, o rosto no
chão, ainda em comunhão com o seu recém-descoberto Salvador.
— E com seu
sangue ele comprou para Deus a mulher, Sally Beth Roe! As espadas
ondularam, e sua luz trespassou as trevas assim como um
relâmpago
trespassa a noite.
— Ele comprou
Sally Beth Roe!
— Digno é o
Cordeiro que foi morto — principiou Guilo, e então todos juntos
cantaram essas palavras com vozes que sacudiram a terra — de
receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória,
e louvor!
Então ouviu-se
outro rugido, de vozes e de asas, e outro relampejar de centenas de
espadas. As asas se firmaram, e os céus encheram-se com guerreiros,
rodopiando, gritando, aclamando, adorando, sua luz inundando a
terra por quilômetros ao redor.
A quilômetros
dali, alguns dos demônios de Destruidor cobriram os olhos contra a
luz ofuscante.
— Oh, não! —
disse um deles. — Outra alma redimida!
— Um de
nossos prisioneiros liberto! — lamentou outro.
Um espia
rápido, de olhos penetrantes, retornou depois de ter ido ver mais de
perto.
— Quem e
desta vez? — perguntaram eles. O espírito respondeu:
— Vocês não
vão gostar da notícia!
Tal e Guilo se
abraçaram, saltando, rodopiando, rindo.
— Salva!
Sally Beth Roe está salva! Nosso Deus a tem enfim!
Eles
continuaram, juntamente com seus guerreiros, a manter forte e
brilhante a barreira em redor dela, assegurando que a comunhão da
mulher com o Senhor prosseguisse sem perturbação.
O tempo passou,
naturalmente, mas ninguém parecia notar ou importar-se.
Mais tarde —
ela não sabia quanto mais tarde — Sally pressionou as palmas das
mãos contra a terra e ergueu-se lentamente até sentar-se, limpando
folhas secas e húmus das roupas e usando um lenço para enxugar o
rosto. Ela havia passado por uma experiência incomum, perfeitamente
maravilhosa, e o efeito ainda persistia. Uma mudança, uma
restauração profunda, pessoal, moral, havia ocorrido, não apenas
em suas percepções subjetivas, mas de fato. Isso era algo novo,
algo verdadeiramente extraordinário.
— Então isto
deve ser o que eles querem dizer com "ser salva" — falou
ela em voz alta.As coisas estavam diferentes. A Sally Roe que
havia-se escondido nesse bosque não era a mesma Sally Roe que estava
agora sentada nas folhas, uma bagunça trêmula, pasmada, coberta de
lágrimas.
Antes, ela
havia-se sentido perdida e sem objetivo. Agora sentia-se segura,
resguardada nas mãos de Deus.
Antes, sua vida
não tinha significado. Agora tinha, com mais propósito e
significado ainda para ser descoberto.
Antes, ela
havia estado oprimida e sobrecarregada de culpa. Agora estava limpa.
livre. Perdoada.
Antes, ela se
sentia muito sozinha. Agora, tinha um Amigo mais íntimo do que
qualquer outro.
Quanto aos seus
velhos amigos, os atormentadores...
Fora da
barreira, jogados por ali como lixo num depósito de detritos,
Desespero, Morte, Loucura, Suicídio e Medo, amuados, estavam nos
arbustos, incapazes de voltar. Eles se entreolharam, prontos para um
bate-boca se algum se atrevesse a dizer a primeira palavra.
Estavam fora.
Vencidos. Acabados. Sem mais esta nem aquela. De alguma forma, assim
que ela se tornou filha de Deus, começou a firmar os direitos e
autoridade que tinha como tal. Não disse muito, não fez um discurso
rebuscado. Simplesmente ordenou-lhes que saíssem da sua vida.
— Ela aprende
depressa — disse Desespero.
Os outros
cuspiram nele apenas por ter dito aquilo.
— Isto é
maravilhoso — disse ela consigo mesma, rindo de espanto e êxtase.
— Simplesmente maravilhoso!
Tal e Guilo
observavam, gozando cada momento.
— A palavra
do testemunho dela e o sangue do Cordeiro — disse Tal. Guilo
assentiu com a cabeça. — São os dois.
Tal desfraldou
as asas com o som do esboroar de uma onda do oceano. Ele soergueu bem
alto a espada, e todos fizeram o mesmo de modo que o Parque Lakeland
foi inundado pela luz tremeluzente.
— Pelos
santos de Deus e pelo Cordeiro!
— Pelos
santos de Deus e pelo Cordeiro!