quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Conversão de Sally Beth Roe em "Este Mundo Tenebroso 2"

Uma questão mais imediata. Sally surpreendeu-se um tanto com seu tom desapaixonado, prático, como se ela fosse datilografar uma carta ou fazer uma compra. Na realidade, estava por entrar num relacionamento que podia potencialmente alterar o curso de toda a sua vida, reestruturar totalmente seu conceito do mundo, e trazer à consideração cada questão moral, cada ato, cada decisão e cada atitude de todos os seus anos anteriores; suas mais profundas cicatrizes e emoções, as áreas mais pes­soais e resguardadas de sua vida, estariam sendo expostas. O relaciona­mento seria um confronto, talvez devastador.
Pelo menos, era isso o que ela esperava do acordo, e por esse motivo havia ponderado a ação a noite toda, pesando os prós e os contras, considerando os custos, testando e eliminando as opções. Tornou-se claro para ela que teria de pagar um preço enorme em termos de ego e vontade própria, e que o acordo traria consigo implicações assombrosas para o futuro. Mas todas as dúvidas foram examinadas e respondidas, cada objeção foi ouvida com imparcialidade, e entre os debates ferozes e acalorados que Sally travou consigo mesma no tribunal de sua própria consciência, ela dormia pensando neles.
Quando a luz do dia espiou pelas janelas do ônibus, ela já havia resolvido em sua mente que, considerando todas as coisas, esse importante compromisso seria a coisa mais lógica, mais prática e mais desejável que podia fazer, as vantagens excedendo em muito as desvantagens.
Fazia silêncio no parque, com poucas pessoas por ali além de uma matrona que levava o seu poodle para dar uma volta e alguns jovens executivos correndo ao trabalho. Ela mudou-se para outro banco mais perto do laguinho, totalmente exposto ao sol matutino, e sentou-se, a mochila ao seu lado.
Então ela deu-se uma boa e longa olhada. Vestida de calças rancheiras e uma jaqueta azul, com um gorro de meia na cabeça e uma mochila ao lado, parecia uma nômade sem lar.
E era.
Parecia solitária e sozinha.
E era.
Também parecia pequena e insignificante num mundo muito grande, e isso tinha mais peso em sua mente do que qualquer outra coisa. Como deveria parecer a um Deus grande o bastante para ter criado esse globo enorme no qual ela se sentava? Como um micróbio na lâmina de um microscópio? Como chegaria Ele a encontrá-la?
Bem, tudo o que estava ao seu alcance era fazer um pouco de barulho, clamar por ele, criar um distúrbio, enviar alguns foguetes de sinalização verbais. Talvez pudesse fazer com que ele a visse ou ouvisse.
Ela colocou o caderno no colo e voltou as páginas até chegar a uma de notas que havia preparado. Agora... onde começar?
Falou baixinho, mal formando as palavras com os lábios. Sentia-se acanhada e estava disposta a admiti-lo.
— Umm... alô. — Talvez ele a ouvisse, talvez não. Ela falou novamente. — Alô. — Isso seria o suficiente. — Imagino que saiba quem sou, mas me apresentarei assim mesmo. Parece a coisa certa a fazer. Meu nome é Sally Beth Roe, e acho que a gente se refere à sua pessoa como... Deus. Ou talvez Jesus. Já ouvi isso ser feito. Ou... Senhor. Compreendo que atende por diversos títulos, e por isso espero que me permitirá tatear um tantinho. Faz muito tempo desde a última vez em que tentei orar.
— Umm... de qualquer forma, gostaria de encontrar-me com o Senhor hoje, e discutir a minha vida e que possível papel o Senhor poderia desejar desempenhar nela. E obrigada desde já por seu tempo e atenção.
Ela olhou fixamente as anotações. Havia chegado até ali. Acreditando que havia prendido a atenção de Deus, ela prosseguiria com o próximo item.
— Para revisar rapidamente qual o motivo desta reunião, acho que o Senhor se lembra da nossa última visita, há aproximadamente trinta anos, na... Igreja Batista de Monte Sião, em Ireka, na Califórnia. Quero que o
Senhor saiba que eu realmente gostava das horas que passávamos juntos então. Sei que não falei nada a respeito disso em bastante tempo, e peço desculpas. Foram horas preciosas, e agora são minhas recordações favori­tas. Alegro-me por tê-las.
— Assim, suponho que o Senhor esteja querendo saber o que aconte­ceu, e porque eu desfiz o nosso relacionamento. Bem, não me lembro do que aconteceu exatamente. Sei que os tribunais me devolveram à minha mãe, e ela não estava disposta a levar-me à escola dominical como a tia Bárbara fazia, e então fui morar num lar temporário, e depois... Bem, qualquer que fosse o caso, nossos tempos juntos simplesmente não continuaram, e isso é tudo... Bem, acho que isso são águas passadas...
Sally deteve-se. Havia algum tipo de despertar ocorrendo dentro de si? Deus podia ouvi-la. Ela sentia isso; apenas sabia-o de algum modo. Aquilo era estranho. Era algo novo.
— Bem... — Agora ela havia perdido o fio da meada. — Acho que sinto que o Senhor me está ouvindo, por isso quero agradecer-lhe. — Ela conseguiu retomar os pensamentos. — Oh, de qualquer forma, acho que eu era uma jovem enraivecida, e talvez tenha-o culpado por minhas tristezas, mas... de qualquer forma, resolvi que podia cuidar de mim mesma, e assim foi que aconteceu basicamente a maior parte da minha vida. Estou certa de que o Senhor conhece a história: tentei o ateísmo, e depois o humanismo com uma forte dose de evolução incluída, e isso deixou-me vazia e tornou sem sentido a minha vida; então, em seguida, tentei o humanismo e misticismo cósmicos, e eles serviram para muitos anos de ilusões e tormentos sem objetivo, e, para falar a verdade, para o apuro em que estou metida no momento, inclusive o fato de ter sido condenada como criminosa. O Senhor sabe tudo a respeito disso.
Muito bem, Sally, agora aonde vai? É melhor tratar logo do que realmente importa.
— Bem, de qualquer forma, acho que o que tentava dizer é que Bernice, lá em Ashton, estava certa, pelo menos no que diz respeito a Sally Roe. Eu tenho um problema moral. Li um pouco a Bíblia. Umm... é um bom livro... e um belo trabalho — e vim a perceber que o Senhor é um Deus de moral, de ética, de absolutos. Acho que é isso o que "santo" significa. E estou de fato contente por isso, porque então podemos saber onde ficam os nossos limites; podemos saber qual é a nossa posição...
— Estou enrolando, sei disso.
Sally parou para pensar. Como poderia dizê-lo? Exatamente o que era que desejava de Deus?
Acho... — Oh-oh. Emoção. Talvez seja por isso que não consigo chegar ao que preciso dizer. — Acho que preciso perguntar-lhe a respeito do seu amor. Sei que ele existe; a Sra. Gunderson sempre falava a respeito, e também a minha tia Bárbara, e agora tive um curto vislumbre dele novamente em minhas conversas com Bernice e com aquele pastor, Hank, o Encanador. Preciso saber se o Senhor...
Ela parou. Lágrimas se lhe formavam no canto dos olhos. Ela as enxugou e respirou fundo diversas vezes. Isso deveria ser prático, não alguma experiência emocional, subjetiva da qual ela pudesse duvidar mais tarde.
— Desculpe. Isto é difícil. Há uma porção de anos envolvidos, uma porção de emoções. — Outra respiração profunda. — De qualquer forma, eu tentava dizer que... eu gostaria muito que o Senhor me aceitasse. — Ela parou e deixou que o aperto na garganta melhorasse. — Porque... me disseram que o Senhor me ama, e que arranjou para que todos os meus erros, minhas transgressões morais, fossem pagos e perdoados. Vim a compreender que Jesus morreu para pagar a minha culpa, para satisfazer a sua justiça santa. Umm... aprecio isso. Obrigada por esse tipo de amor.
— Mas eu... quero entrar nesse tipo de relacionamento com o Senhor. De algum jeito. Eu o ofendi, e ignorei, e tentei ser eu mesma um deus, não importa quanto isso lhe possa parecer estranho. Servi a outros espíritos, e matei minha própria filha, e trabalhei muito a fim de desviar muita gente...
As lágrimas vinham de novo. Ora essa. Considerando o assunto em questão, umas lágrimas não seriam impróprias.
— Mas se o Senhor me quiser... se apenas me aceitar, eu estarei mais que disposta a entregar-lhe tudo o que sou, e tudo o que tenho, valha o quanto valer. — Palavras de trinta anos antes vieram-lhe à mente, e captaram perfeitamente os seus sentimentos: — Jesus...
Dessa vez ela não pôde conter as emoções. O rosto corou, os olhos se encheram, e ela teve medo de continuar.
Mas continuar ela continuou, mesmo enquanto a voz falhava, as lágri­mas lhe escorriam pelas faces, enquanto o corpo principiava a tremer.
— Jesus... quero que o Senhor entre no meu coração. Quero que o Senhor me perdoe. Por favor, perdoe-me.
Ela chorava e não conseguia parar. Tinha de sair daquele lugar. Não podia permitir que alguém a visse assim.
Agarrou a mochila e apressou-se para longe do laguinho, saindo da calçada e entrando no meio de umas árvores próximas. Debaixo do abrigo das folhas novas e primaveris, ela encontrou uma pequena clareira e caiu de joelhos sobre o chão fresco, seco. Com uma nova liberdade que esse esconderijo trazia, o coração de pedra tornou-se um coração de carne, os mais profundos clamores daquele coração tornaram-se uma fonte, e ela e o Senhor Deus começaram a falar acerca de coisas enquanto os minutos passavam suavemente, despercebidos, e o mundo ao seu redor perdia a importância.Em cima, como se outro sol acabasse de nascer, as trevas se abriram, e raios puros, brancos, atravessaram as copas das árvores, inundando Sally Beth Roe com uma luz celestial, brilhando através do seu coração, seu espírito mais íntimo, obscurecendo seu vulto com um fogo ofuscante de santidade. Lentamente, sem sentir, sem som, ela acomodou-se para a frente, o rosto no chão, o espírito transbordando com a presença de Deus.
Em toda a sua volta, como raios de uma roda assombrosa, como raios de luz emanando de um sol, lâminas angelicais descansavam no chão, as pontas voltadas na direção dela, os cabos estendidos para fora, seguros nos punhos fortes de centenas de nobres guerreiros que se ajoelhavam em círculos perfeitos e concêntricos de glória, luz e adoração a Deus, as cabeças no chão, as asas estendidas na direção do céu como um jardim florescente e animado de chamas. Eles mantinham silêncio, os corações cheios de temor santo.
Como em inúmeras vezes no passado, em inúmeros lugares, com assombro maravilhoso, inescrutável, o Cordeiro de Deus estava no meio deles, o Verbo de Deus, e mais: o Verbo final, o fim de todas as discussões e desafios, o Criador e a Verdade que sustenta toda a criação — e mais maravilhoso que tudo, e mais inescrutável de tudo, o Salvador; um título que os anjos sempre contemplariam e com o qual sempre se maravilha­riam, mas que somente a humanidade podia conhecer e compreender.
Ele havia vindo para ser o Salvador daquela mulher. Ele a conhecia pelo nome; e falando-lhe o nome, ele a tocou.
E os pecados dela desapareceram.
Um farfalhar começou na primeira fileira de anjos, depois na seguinte, e depois, como uma onda arremetendo para fora, as asas sedosas de fileira em fileira de guerreiros arrepanhou o ar, elevando um bramido e soerguen­do os anjos sobre seus pés. Os guerreiros seguraram as espadas na direção dos Céus, uma floresta de lâminas chamejantes, e puseram-se a bradar em júbilo tumultuado, as vozes ribombando e sacudindo todo o reino espiri­tual.
Guilo, tão brilhantemente glorificado como jamais o fora, tomou seu lugar acima de todos eles, e brandiu a espada à volta em arcos chamejantes enquanto bradava:
— Digno é o Cordeiro!
— Digno é o Cordeiro! — trovejaram os guerreiros.
— Digno é o Cordeiro! — bradou Guilo mais alto ainda.
— Digno é o Cordeiro! — responderam todos.
— Pois foi morto!
— Pois foi morto!Guilo apontou a espada a Sally Beth Roe, prostrada, o rosto no chão, ainda em comunhão com o seu recém-descoberto Salvador.
— E com seu sangue ele comprou para Deus a mulher, Sally Beth Roe! As espadas ondularam, e sua luz trespassou as trevas assim como um
relâmpago trespassa a noite.
— Ele comprou Sally Beth Roe!
— Digno é o Cordeiro que foi morto — principiou Guilo, e então todos juntos cantaram essas palavras com vozes que sacudiram a terra — de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor!
Então ouviu-se outro rugido, de vozes e de asas, e outro relampejar de centenas de espadas. As asas se firmaram, e os céus encheram-se com guerreiros, rodopiando, gritando, aclamando, adorando, sua luz inundan­do a terra por quilômetros ao redor.
***
A quilômetros dali, alguns dos demônios de Destruidor cobriram os olhos contra a luz ofuscante.
— Oh, não! — disse um deles. — Outra alma redimida!
— Um de nossos prisioneiros liberto! — lamentou outro.
Um espia rápido, de olhos penetrantes, retornou depois de ter ido ver mais de perto.
— Quem e desta vez? — perguntaram eles. O espírito respondeu:
— Vocês não vão gostar da notícia!
***
Tal e Guilo se abraçaram, saltando, rodopiando, rindo.
— Salva! Sally Beth Roe está salva! Nosso Deus a tem enfim!
Eles continuaram, juntamente com seus guerreiros, a manter forte e brilhante a barreira em redor dela, assegurando que a comunhão da mulher com o Senhor prosseguisse sem perturbação.
O tempo passou, naturalmente, mas ninguém parecia notar ou impor­tar-se.
Mais tarde — ela não sabia quanto mais tarde — Sally pressionou as palmas das mãos contra a terra e ergueu-se lentamente até sentar-se, limpando folhas secas e húmus das roupas e usando um lenço para enxugar o rosto. Ela havia passado por uma experiência incomum, perfeitamente maravilhosa, e o efeito ainda persistia. Uma mudança, uma restauração profunda, pessoal, moral, havia ocorrido, não apenas em suas percepções subjetivas, mas de fato. Isso era algo novo, algo verdadeiramente extraor­dinário.
— Então isto deve ser o que eles querem dizer com "ser salva" — falou ela em voz alta.As coisas estavam diferentes. A Sally Roe que havia-se escondido nesse bosque não era a mesma Sally Roe que estava agora sentada nas folhas, uma bagunça trêmula, pasmada, coberta de lágrimas.
Antes, ela havia-se sentido perdida e sem objetivo. Agora sentia-se segura, resguardada nas mãos de Deus.
Antes, sua vida não tinha significado. Agora tinha, com mais propósito e significado ainda para ser descoberto.
Antes, ela havia estado oprimida e sobrecarregada de culpa. Agora estava limpa. livre. Perdoada.
Antes, ela se sentia muito sozinha. Agora, tinha um Amigo mais íntimo do que qualquer outro.
***
Quanto aos seus velhos amigos, os atormentadores...
Fora da barreira, jogados por ali como lixo num depósito de detritos, Desespero, Morte, Loucura, Suicídio e Medo, amuados, estavam nos arbustos, incapazes de voltar. Eles se entreolharam, prontos para um bate-boca se algum se atrevesse a dizer a primeira palavra.
Estavam fora. Vencidos. Acabados. Sem mais esta nem aquela. De alguma forma, assim que ela se tornou filha de Deus, começou a firmar os direitos e autoridade que tinha como tal. Não disse muito, não fez um discurso rebuscado. Simplesmente ordenou-lhes que saíssem da sua vida.
— Ela aprende depressa — disse Desespero.
Os outros cuspiram nele apenas por ter dito aquilo.
***
— Isto é maravilhoso — disse ela consigo mesma, rindo de espanto e êxtase. — Simplesmente maravilhoso!
Tal e Guilo observavam, gozando cada momento.
— A palavra do testemunho dela e o sangue do Cordeiro — disse Tal. Guilo assentiu com a cabeça. — São os dois.
...

Tal desfraldou as asas com o som do esboroar de uma onda do oceano. Ele soergueu bem alto a espada, e todos fizeram o mesmo de modo que o Parque Lakeland foi inundado pela luz tremeluzente.
— Pelos santos de Deus e pelo Cordeiro!
— Pelos santos de Deus e pelo Cordeiro!

Frank Peretti 

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